“Os objetos que compramos, e levamos para casa, inventam para nós um projeto de felicidade. Instalados na sala, eles falam, têm sentimentos, preservam a memória, sobrevivem a nós. Nenhum objeto é pária, merece ser marginalizado.”
Nélida Piñon, Livro das Horas
Vivemos tempos de tristeza e apreensão. Tristeza, pelas famílias enlutadas, que perderam entes queridos na tragédia que assolou nosso querido Rio Grande. Apreensão, pelo sentimento de que a fatura climática chegou e que daqui para diante, muito provável, a realidade nunca mais seja a mesma.
Choramos, antes de tudo e sempre, as irreparáveis perdas pessoais. Nada vale mais do que a vida. Mas, choramos, também, aqueles que perderam suas casas e tudo aquilo que nelas estava. Vidas inteiras em forma de concreto, tijolos, madeira, móveis e objetos, arrastadas pelas águas.
Sinto profunda compaixão por essas pessoas que tudo perderam – a casa e o que nela habitava – e que apenas puderam assistir atônitos seus pertences sendo tragados pela enchente. Os objetos que se foram não eram apenas “coisas”, mas memórias vivas, atômicas, materiais, de toda uma vida. Guardar objetos é uma forma de aprisionar o tempo, de manter vivos os momentos. Todo esse passado, para muitas famílias, foi levado pela correnteza.
Um porta-retratos, o álbum de casamento, o móvel que foi herança da avó, o velho relógio de parede: guardiões silenciosos de nossas histórias. A poltrona surrada não é apenas um lugar de descanso: é um trono de memórias. Poderá ser reposta, é verdade, mas não será mais a mesma “poltrona”. Quantas toneladas de recordações sucumbiram à revolta do clima que nos abateu?
Utensílios domésticos, tão comuns e simplórios, não fugiram a essa dor. A panela que cozinhava as refeições de família, o cobertor que aquecia noites frias, a cuia de chimarrão que tantas conversas embalou. A violência das águas transformou esses objetos em meras lembranças, fazendo do conhecido um espectro; da segurança, uma incerteza.
A reconstrução, no entanto, já surge no horizonte. Com ela, o desafio: reconstruir não só a vida física, material, mas também as memórias que os objetos deixaram. Se não há mais casa, haverá sempre a lembrança de uma casa construída com tanto esforço, e que dará lugar a outra, um tanto estranha no início, mas que guardará a lembrança daquela que a sucedeu. O presente sendo aquecido pelo passado. Em busca de um futuro.
A água pode ter levado muito, mas não a perseverança. Aquela da qual falava Spinoza, que representa o ímpeto de seguir em frente, de “perseverar no seu ser”, como o bom filósofo gostava de dizer. A chama que brilha mesmo nas noites mais escuras. A força invisível que nos faz levantar em cada queda.
Embora o momento seja de dor e até de desesperança, daremos a volta por cima. Tenho certeza de que nossa determinação em recomeçar, em criar novas memórias e encontrar beleza no renascimento, essa, a água não levou.
Por Rogério Gava
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