A imagem é esta: depois de uma visitação guiada e degustação em uma das vinícolas mais conhecidas de Bento Gonçalves, um saxofonista alto e bem-vestido passeia com os dedos entre as chaves de um sax tenor em uma naturalidade ímpar. Ao fim de algumas músicas, oferece seu trabalho encarnado em CDs à venda para os turistas, agora encantados com o som.
“Sax Tropical Volumes 1 e 2”, com músicas de mambo, cumbia e rumba, “Chorinho Só Pra Relembrar”, de nome autoexplicativo, “Músicas Românticas” com sons de bolero, chachachá e suinger, “Músicas Alegres para Dançar” e outros volumes floreados com frases como “Saber Viver é Música, Vinho e Lazer” e “Como diz o povo. O samba velho é sempre novo”. Em todos os encartes, na mesma fonte cursiva, anunciava sua autoria nas interpretações variadas: Oscar do Sax, nome artístico de Oscar de Freitas, saxofonista.
Em um verso de um dos CDs estampados com uma foto de Maria Fumaça, onde o músico também performou por anos, figura uma montagem de um saxofone junto à Pipa Pórtico, símbolo turístico da cidade. Junto, os dizeres: Bento Gonçalves, a Capital da Uva e do Vinho.
O monumento de entrada do município, escolha que demonstra apreço do músico pela cidade, ainda não estampava as boas-vindas aos turistas quando ele, jovem, colocou pela primeira vez seus pés por aqui. Sujos, em chinelos quase arrebentados depois de dias de caminhada de Encantado, onde nasceu.
Oscar acredita fervorosamente em encarar a vida sem pensar excessivamente nos riscos de ir conquistar as coisas que se busca. “Toda vez que um pensamento negativo vem sobre algo, tem que vir com os positivos por cima. Senão, a gente não sai de casa, fica parado, não faz nada”, conta.
Criado pela mãe, Oscar não tem o nome do pai na certidão de nascimento. Com sete anos, passou temporadas em casas de famílias na pequena cidade, de colonização também italiana. Na adolescência, chegou perto de passar fome por um período. “Ainda bem que tinha frutas pra salvar”, lembra sobre o local onde morou.
No quintal da casa própria que orgulhosamente pagou à vista, hoje, cuida com afinco de uma horta com ervas e hortaliças variadas. Cada uma serve para alguma coisa. O melhor anti-inflamatório tá aqui, diz e aponta para uma folha de confrei. Aprendeu tudo com a mãe, benzedeira. Era ele quem, ainda menino, ia buscar o material usado pela mãe nas rezas feitas a quem a visitava.
Trabalhou em um laticínio dos 16 aos 18, pouco antes de vir para Bento Gonçalves. Depois da difícil experiência na casa de uma das famílias onde morou, aprendeu a cicatrizar feridas e criou uma rede de apoio.
Saiu da cidade porque a música o levou. Escolheu Bento Gonçalves porque era a cidade que abrigava a Todeschini, fábrica de instrumentos musicais da época. Os primeiros acordeons do país, no Sul, mais conhecidos como as gaitas, foram produzidos pela empresa familiar na década de 1920.
Andou horas por causa da música. Saiu a pé, às 2h da madrugada. Subiu e desceu morros e chegou na cidade às 16h, depois de uma curta carona conquistada a apenas oito quilômetros do município. Às 17h30, bateu na porta da fábrica e no dia seguinte, na primeira hora, estava trabalhando na fábrica dos sonhos. “Sabia que tinha uma fábrica de gaitas aqui, então vim. Não tinha família, não tinha nada”, diz.
O contato com o instrumento não era novidade. Quando criança, improvisou e chegou a criar uma espécie de instrumento de percussão que fazia ritmo nas rodas de gaiteiros da cidade. “Era chamado para as rodas de gaita por causa disso, fazia aquele barulhinho e ficava bom e o pessoal falava: chama aquele menino lá”, conta.
Na Todeschini, vendia acordeons. “Vendi umas 40, não fiquei com nenhuma”, conta rindo. Só foi ter a primeira gaita há alguns anos, que hoje descansa em sua garagem ao lado de instrumentos variados: principalmente saxofones altos, tenor, soprano. O músico conta que nunca teve coordenação para tocar a base da gaita junto com o movimento da mão direita.
No fim, seu instrumento mesmo é o saxofone. Todos os tipos, de diferentes afinações. Estão, hoje, espalhados pelo ambiente, que carrega música: um pandeiro usado nos shows de carnaval é pendurado como quadro na parede e um trombone de aparente pouco uso descansa no canto do cômodo.
Jovem em Bento Gonçalves, o primeiro instrumento de Oscar foi um clarinete. Aprendeu duas músicas e decidiu ter aulas com um maestro que ensinou-lhe escala. Desde então, aprende música todo dia, década após década. “Música é algo que nunca se acaba de aprender. Como a vida. Sempre tem algo a mais para aprender, sempre tem muita coisa”, comenta o músico, hoje com 76 anos de idade.
Do clarinete, escolheu o sax tenor pela afinação similar em si bemol.
Nunca pensou em parar de trabalhar para viver da música e, aos amigos com essa ideia, buscava desencorajar. A falta de valorização dos artistas é um fator ressaltado, mas ainda não se contentava com o cargo de empregado quando não estava fazendo o que mais ama fazer.
Com 23 anos apenas, largou um emprego como mecânico na Aurora para, junto com colegas, abrir o próprio negócio. Sua empresa de solda chegou a ganhar o título de maior compradora de aço do Rio Grande do Sul. “330 toneladas de aço em um ano”, comenta. “Mas não adianta ganhar dinheiro e não ter vida. É melhor ter pouco, mas viver melhor”, diz o músico ao falar, convencido, de que os últimos 20 anos da sua vida, logo após o fechamento da empresa, foram os melhores. Vida em paz.
Empreendedor, construía a vida na cidade: integrava a banda municipal e logo formou seu próprio grupo. A banda, antenada à década em que surgiu, batizada com nome em inglês.
Oscar lembra que foi um dos primeiros da cidade a ter um aparelho de rádio, único local possível para escutar referências. Chico Buarque de Hollanda, Gilberto Gil e outros expoentes da música brasileira despontavam nessa época. “Estava à toa na vida, o meu amor me chamou”, cantarolou relembrando uma delas, sucesso de Chico. Depois de quatro meses ouvindo na rádio quando tocava o som, a banda já a levava para os palcos de shows em Bento. Tirava tudo no ouvido. Seu grupo era pioneiro na cidade e Oscar tem orgulho disso.
Para além do eixo Rio-São Paulo, sintonizava nas ondas de música caribenha. À semelhança da criação do gênero musical paraense como “guitarrada”, escutava as batidas advindas da América Central e se inspirava nos arranjos para apresentação no interior da Serra Gaúcha, onde a música era, à época, limitada às cantigas italianas vindas de outro continente.
Fotos em eventos carnavalescos não cessam. Aponta nelas alguns companheiros que faziam som junto com ele. Uns ainda aqui, outros que já se foram.
Oscar gosta de samba, tango, cumbia. Diz ser possível transformar, com uso do ritmo da síncope, qualquer melodia em música brasileira, latino-americana. Se adapta, sempre.
Nos saxofones, o faz também. Oscar mostra as adaptações nas chaves e peças de posicionamento dos dedos que julgar necessário para o manuseio. Conserta os instrumentos de mecânica complexa, troca posições de notas e entende as diferenças de sonoridade.
Um fabricado na década de 1950, feito ainda para segurá-lo de forma curvada (algo do passado para quem toca saxofone hoje), foi um deles. Por ser leve, é o escolhido por Oscar na hora de tocar. Uma dor na cervical o fez colocar um lindo Yamaha dourado à venda. Prioriza, atualmente, o uso de saxofones altos, mais agudos, pequenos e leves. O que é mais difícil vender são os tantos CDs e pendrives de músicas encaixotados que, desde o advento da pandemia, ficaram estocados em casa.
Oscar encara a realidade com firmeza e faz o melhor que dá diante das condições, sempre foi assim. A realidade bate na porta e as vendas podem não ser tão boas. Mas não pretende entrar no Spotify, diz. Idade já foi. Idade trouxe também uma fraqueza ao corpo que, segundo o músico, se abala mais com “mau olhado”.
O músico dava conta de terminar o turno na vinícola com momentos de pausa para meditação. Hoje, sem muitos trabalhos fora, treina pouco. É uma hora por dia, relembrando canções na garagem. E as melodias há muito não lidas demoram um pouco para encaixar no movimento dos dedos. “Mas o incrível é que elas vêm, em algum lugar da cabeça ainda ficam, mesmo depois de muitos anos”, diz.
Aos iniciantes na música e no sax, Oscar tem as palavras treinadas na resposta: não pare, porque quem para na música, provavelmente vai se arrepender depois. É preciso manter o ritmo do caminhar, na música, na vida. Oscar toca e não parece lutar contra o tempo, integra-se a ele. Manutenção do ritmo.
POR JÚLIA BEATRIZ DE FREITAS
CRÉDITO FOTO: Júlia Beatriz de Freitas