“Meu amigo guerrilheiro”, texto publicado no livro “Janelas da Memória”, de autoria do jornalista, escritor, pesquisador e historiador Ademir Antonio Bacca.
A obra pode ser encontrada nas livrarias de Bento Gonçalves ou com o autor, pelo fone 54 99969 0034.
A primeira vez que ouvi falar no nome de Cláudio Meneguz, foi numa longínqua noite de outubro de 1979. O país atravessava significativas mudanças políticas e estávamos em Garibaldi, entrevistando o então membro da Comissão Regional Provisória Pró-formação do Partido dos Trabalhadores no Estado, Paulo de Tarso.
Eram os primeiros tempos da abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel (que seria concluída anos mais tarde, durante o governo do General Figueiredo) e, em meio à entrevista com o ex-preso político, causou-me grande surpresa saber que, entre as pessoas que ousaram enfrentar o regime militar, encontrava-se um cidadão bento-gonçalvense.
A preocupação de Paulo de Tarso com o estado de saúde do seu companheiro de luta e de prisão, registrada na entrevista publicada na edição do dia 19 de outubro daquele ano, do Jornal Laconicus, seguida de um relato minucioso sobre as torturas que ele sofrera, mexeram comigo. E me inquietaram.
Afinal, quem era Cláudio Meneguz? Onde ele estava? Que fim levara?
Essas perguntas ficariam sem resposta por muitos anos e quase haviam caído no esquecimento, não fosse um dia acontecer dos nossos caminhos se cruzarem acidentalmente.
Não lembro se foi em 1984 ou 1985, descobri que Cláudio era irmão de um amigo meu e estava trabalhando como repórter do Jornal Semanário. Um dia, eu o abordei, convidei-o para um café e lhe propus invertermos os papéis: queria que ele desse uma entrevista exclusiva para o meu jornal.
Apesar da recusa categórica em abrir o baú das suas dores, a partir de então, por um determinado tempo, Cláudio me visitou quase que diariamente na redação do Laconicus onde, em doses homeopáticas, abriu seu coração sempre em off. Falou sobre a sua participação na luta contra a ditadura, integrando a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), liderada por Carlos Lamarca, por quem confessou nutrir grande admiração. Falou também da sua prisão, da tortura que sofreu e dos dias (e principalmente das noites) terríveis de prisão, na famigerada Ilha do Presídio, no meio do Rio Guaíba.
A entrevista nunca saiu, pois ele não permitiu que eu gravasse nossas conversas e, embora tenha conhecido toda a sua história, de acordo com o combinado, nunca publiquei uma linha sequer sobre o assunto. Mas confesso que a tentação sempre foi muito grande.
Seu rosto e semblante triste (e por vezes confuso), deixavam claro que suas feridas ainda não estavam cicatrizadas e que, talvez, nunca deixariam de atormentar o seu sono.
As lembranças do período de prisão e as sequelas da tortura a que fora submetido ainda eram visíveis e, percebia-se, lhe doíam demais. Já não era a dor física das incontáveis sessões de tortura, mas uma dor silenciosa que o destruía por dentro. Uma dor que doía muito mais que a anterior.
Acuado, com medo da própria sombra, perturbado emocionalmente, assim como apareceu, Meneguz um dia sumiu de repente, sem aparecer para um último café. Fechou-se em copas, largou o emprego e entregou-se mais uma vez ao silêncio das suas lembranças.
Tentei diversos contatos, todos infrutíferos. A ideia da entrevista sempre presente, mas o entrevistado definitivamente ausente. A mim cabia apenas respeitar a sua decisão e o nosso acordo. O medo, muito mais poderoso que a ditadura militar, derrotara-o definitivamente, pensei eu na época.
Estava redondamente enganado.
Eis que de repente, muitos anos depois, numa tarde de julho de 1998, feito Fênix, Meneguz renasce das cinzas e aparece na redação do jornal, desta vez na rua Júlio de Castilhos, dizendo estar lutando na justiça pelos seus direitos violados.
Haviam-se passado alguns anos do nosso último encontro, mas ainda eram visíveis as marcas do terrível tempo que passara nas mãos dos seus torturadores. Marcas que, infelizmente, o acompanhariam pelo resto dos seus dias. Lamentavelmente.
Ainda não foi naquela vez que ele abriria seu coração e contaria, com detalhes, a sua participação na luta contra a ditadura militar que se impôs no Brasil, a partir de abril de 1964.
Lutava ele agora uma outra batalha, esta burocrática, para tentar conseguir uma reparação moral pelos estragos que os maus tratos do regime militar proporcionaram ao seu corpo, moído de tanta pancada, seja nas dependências do DOPS ou na famigerada Ilha do Presídio, onde permaneceu preso por um longo período.
Queria que eu lhe indicasse alguém em Porto Alegre que pudesse ajudá-lo a localizar dois exemplares de jornais antigos, edições que circularam na véspera da sua prisão, quando seus colegas de faculdade conseguiram driblar a censura e publicar uma nota denunciando o seu desaparecimento.
Lembrei-me do poeta Sérgio Napp, então diretor da Casa de Cultura Mario Quintana, o qual prontificou-se a ajudar o ex-guerrilheiro.
Poucos dias depois, Meneguz voltava à redação do Laconicus feliz por ter conseguido os recortes do jornal Correio do Povo, que Napp prontamente mandara sua Chefe de Gabinete, a incansável Nóia Kern, xerografar nos arquivos da Biblioteca Pública de Porto Alegre.
A última vez que nos encontramos também foi na redação do Laconicus. Meneguz viera me comunicar que o depoimento que eu havia prestado, por escrito, à Comissão que analisava os pedidos de indenização fora aceito, e que ele receberia uma determinada quantia em dinheiro.
Parado na porta da minha sala, com seu olhar triste, falou:
— No dia em que eu receber esse dinheiro, vou te pagar um churrasco e aí, quem sabe, gravaremos aquela famosa entrevista.
Foi a última vez que o vi.
O dinheiro que recebeu como indenização pelos maus tratos sofridos nas mãos da ditadura acabou sendo a sua última desgraça. Emprestou uma parte dele a um conhecido e este, para não pagá-lo no dia prometido, acabou matando-o com requintes de crueldade.
Encontraram-no morto no porão da casa onde residia com a mãe. Estava com pés e mãos amarrados, amordaçado, e nem quero imaginar o quanto lhe doeu reviver seus negros anos de prisioneiro da ditadura.
Foi morto com golpes de pedra na cabeça. Por ironia da roda do tempo, num dia 31 de março. Dia oficial da ditadura, que já havia matado, muitos anos antes, o que de melhor ele tinha dentro de si.
VAR Palmares
A Vanguarda Armada Revolucionária Palmares foi uma organização de extrema esquerda que participou da luta armada durante a ditadura militar ocorrida no Brasil (1964-1985), que tinha como objetivo a derrubada do regime e a introdução de um governo comunista no país.
A organização surgiu em julho de 1969, como resultado da fusão do Comando de Libertação Nacional (COLINA), fundada por João Lucas Alves e que tinha entre seus quadros Dilma Rousseff, e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), liderada por Carlos Lamarca.
A organização foi responsável por inúmeras ações, sendo a mais famosa o roubo ao cofre do ex-governador de São Paulo, Adhemar de Barros. O grupo também foi responsável pela morte do marinheiro inglês David Cuthberg, fato que acabaria provocando a reação do governo militar que perseguiu, assassinou e prendeu os seus principais líderes, provocando o fim da organização.
Em dezembro de 1969, A VAR Palmares planejou o sequestro do então Ministro da Fazenda, Delfim Netto, mas a prisão de membros do grupo acabou abortando o plano.
A Ilha do Presídio
A Ilha das Pedras Brancas já se chamou Ilha do Presídio. Foi depósito de pólvora durante o Império e passou a hospedar prisioneiros a partir de 1956. Na sua história registra muitas tentativas de fuga, mas apenas o apenado Júlio de Castilhos Petinelli conseguiu fugir, em 1983, boiando em duas panelas.
Durante a ditadura, abrigou presos políticos, militantes da luta armada, a exemplo de Claudio Meneguz, que teve como companheiros de cativeiro, entre outros, Raul Pont, Carlos Araújo (marido de Dilma Rousseff), Índio Vargas e José Carlos de Bona Garcia, todos, com exceção de Meneguz, viriam a se destacar na política gaúcha após a anistia e a redemocratização do país.
O fato mais rumoroso envolvendo a Ilha do Presídio entrou para a história como o “Caso das mãos amarradas”, a partir do momento em que o corpo do preso político e ex-sargento do exército Manuel Raymundo Soares foi encontrado boiando no rio Guaíba, com as mãos amarradas e sinais evidentes de tortura. No dia 4 de abril de 1983, o então governador Jair Soares mandou fechar a prisão.
Fotos: Acervo família e reprodução