Entre nós, persiste a incapacidade de assimilar a tragédia, por mais que se olhe ao redor. As cenas trágicas, tristes, as histórias de voluntários e sobreviventes mostram a tragédia que se abate sobre nós, nossos conhecidos, nosso povo, sobre nossa região, a Serra Gaúcha, o Vale do Taquari, nossa capital, Porto Alegre, enfim, todo o estado do Rio Grande do Sul.
Tragédia! Palavra difícil de usar, pois podemos incorrer em exagero, igualando a um grande mal, fatos que tenham repercussão e significados menores. Afinal, o que significa, exatamente, essa palavra tão avassaladora? Desastre, adversidade, calamidade, catástrofe, contrariedade, desgraça, desgraceira, desventura, fatalidade, infortúnio, lástima, má sorte, mal, perda, revés, tribulação. Tudo de pior. Além disso, também se refere a uma modalidade dramática, teatral, que termina num acontecimento funesto. Sim… isso tudo é o que se passa. Não é demais exclamar: que tragédia vivemos!
Só o que pode nos salvar de chamar o que vivemos de uma tragédia, é o fato de que ela sempre termina num acontecimento funesto e, como a vida segue, ainda não chegamos a um desfecho. O final ou a evolução dos acontecimentos carrega em si o potencial de nos levar a situações melhores.
Impossível não lembrar da força sempre atribuída ao povo gaúcho. Determinação, coragem, fé, trabalho, força, superação, são constantes na história desse Estado. Consta em nosso hino: “Sirvam nossas façanhas, de modelo a toda a terra”. E eis que a história marca novamente essa terra, desafiando nossas raízes, de fato, com a água arrastando nosso solo, com deslizamentos, arrancando nossa flora e levando nossa fauna sem dó. A natureza sobrepondo-se às vidas humanas, surpreendidas em seu cotidiano, na incredulidade de que tamanha desgraça pudesse acontecer.
Filme, ficção, guerra, pesadelo. Palavras que têm ocupado nosso pensamento e vocabulário com incômoda frequência ultimamente. Queremos falar em superação, no “dia seguinte”, em novas vitórias e projetos, mas ainda estamos vivenciando a crise. Ainda é preciso assimilar. E aqui, a gênese do trauma, no excesso do estresse que incide sobre nós, na incapacidade de abarcar em nosso aparelho psíquico tudo o que acontece e precisa ser compreendido e superado. O ser humano é forte, o gaúcho é forte, mas tem seus limites, seus tempos, suas demandas. Não há mágica, mas paciência e tempo, apoio, confiança e fé na sucessão dos dias, processando todos os lutos sobrepostos nessa situação de múltiplas perdas.
De maneira surpreendente, no entanto, levanta-se em meio à correnteza, à lama e aos escombros, à morte e à desilusão, diante do pior dos cenários, aquilo que há de mais nobre no ser humano, o amor ao semelhante, a solidariedade, a empatia, o altruísmo. Surge dos locais mais remotos, menos esperados, todo o tipo de socorro. Verdadeiros exércitos se mobilizam voluntariamente para ajudar. Vidas colocadas em risco para salvar outras vidas em risco. Patrimônios colocados à disposição para salvar e acolher vidas. Os gaúchos, brasileiros, são abraçados por seus conterrâneos. Do exterior, diante de tamanha tragédia, também chegam donativos de todas as espécies. Os brasileiros gaúchos são também cidadãos do mundo.
A dor e o sofrimento tocam o coração das pessoas. Assim como nós sofremos ao saber de territórios em guerra ou assolados por desastres ou doenças, também o mundo nos olha com pesar e desejo de recuperação.
Infelizmente, nesses momentos trágicos, o ser humano se mostra humano em todos os sentidos, no que há de melhor e também no que pode haver de pior em seu interior. Enquanto alguns doam, outros furtam, desviam; enquanto alguns são voluntários, outros seguem indiferentes; enquanto alguns acolhem, protegem, adotam, outros agridem, violam.
É preciso lidar, também, com a morosidade do sistema estabelecido, que burocratiza possíveis soluções, que não sintoniza com a urgência e com a fragilidade da vida humana. Por outro lado, revelam-se líderes naturais, habilidades de organização e logística, de cuidado e provisão. Seres anônimos tornam-se bravos heróis, mesmo que sem reconhecimento ou medalha, mas em paz com sua consciência.
Paradoxalmente à tragédia, apresenta-se a potência da vida. Há sobreviventes, cuidadores, bondade e amor. Já vemos, em muitos lugares, pessoas retornando às suas casas e cidades, iniciando a limpeza, selecionando o que pode ser aproveitado, trabalhando, mesmo entre lágrimas. Erguem-se as orações, que com fé elevam o espírito.
A vida sempre encontra caminhos, mesmo após o pior revés. Assim, seguimos a contar a história, que ainda não chegou ao seu desfecho. Contamos como narradores e personagens, mas também como autores da trama que se desenrola. Curiosa situação que permite sermos criativos na busca da superação.
Lembrando a arte, que imita a vida e que também salva, uma viagem por alguns dizeres poéticos nos lembra que viver ultrapassa qualquer entendimento; que talvez, o maior ensinamento da vida seja aprender a se reconstruir e recomeçar, sempre que necessário, olhando para a vida como um milagre. E, parafraseando Charlie Brown Jr., a volta por cima vem na continuação e só o amor constrói pontes indestrutíveis.
Finalizando, lembremos da canção: “É o meu Rio Grande do Sul céu, sol, sul, terra e cor, onde tudo que se planta cresce e o que mais floresce é o amor”.
Por BPW Conexão Psi