Depoimento emocionante de Natália Giacomello ao pai, que ficou 60 dias hospitalizado com Covid-19
Meu pai ficou 60 dias na UTI.
Diagnóstico: Covid-19
Não foi só uma gripezinha.
Nenhuma ivermectina impediu o agravamento da doença.
Ele não tinha nenhuma comorbidade.
Renasce um homem que, me disse hoje, o que está mais sentindo/aprendendo é sobre a “humildade”.
O homem que relutava ao toque, ao abraço, agora é banhado, lavado, cuidado, virado, trocado, acariciado, ajudado, manipulado por várias mãos. Já vi muitos homens lutarem anos contra suas “fraquezas” até serem carregados pela inundação. É o fundamento da natureza que sempre aparece abalando as estruturas, lembrando que somos um corpo nu no mundo. Se isso não é transformação, que me digam, então, as borboletas!
Agora, depois de 10 dias fora da UTI, mas ainda no quarto, converso e converso visando que a experiência dos meus 36 convença um senhor bem-sucedido de 72 anos de que é necessário reaprender, aprender, criar, se reinventar. O ambiente é novo, o corpo é novo, as configurações são novas. O mais forte de tudo isso é o amor e afeto dos que o querem bem e também dos que o cuidam.
Agora, depois de 10 dias, com pequenas melhoras, mas significativas, ele me conta todos dias de “grandes coisas” e feitos diários. Apesar de ainda acamado, a mente voa para fora das janelas do sétimo andar do hospital.
No dia seguinte, após conversarmos sobre a paciência ele me disse que “tinha ido pescar”. Numa consciência ainda farta de desgastes, sonhar se tornou uma realidade paralela bem presente no cotidiano hospitalar em meio a um nada para se fazer, onde o corpo está apto a dormir um sono que se interrompe constantemente entre soros, medicações, fraldas a trocar, mudança de posição e outras peripécias. Se pescar não é indício de ter paciência, não sei mais do que se trata.
Anteontem falávamos sobre a necessidade de persistência para recuperação dos movimentos. Dia seguinte ele me relatou que estava tentando entender o que acontecera com ele. Por alguns instantes pensei que se tratava de um questionamento sobre os dias que antecederam a internação. Na verdade, ele me contava:
– Eu estou tentando entender o que aconteceu comigo. Eu estava na casa da vó (mãe) e quando eu saí de lá 4 raios me atingiram. Depois saí de novo e mais um raio me atingiu.
– E aí, pai, tu levantou sozinho ou alguém te ajudou?!
Ele pausa para pensar…
Esse raio que o derruba é a força intensa da vida, de uma outra vida minúscula capaz de causar estrago num grandalhão de 1,85m. Esses raios de corrente de sangue que carregam milhares de informações que dizem para um braço levantar e, por mais claro que a mente entenda, o braço parece receber apenas 10% da informação. Esse raio que é força que incita ou, então, que derruba.
Hoje, ele me conta que “aí embaixo” ele encontrou com uma juíza, conhecida. Ela falava para ele que foi um trabalho intenso, que não sabiam se ele ficaria vivo ou não durante os dias mais difíceis da doença. Depois de perguntar as características da juíza ele me relata que tinha cabelos brancos. A juíza, certamente personagem de mais um sonho, fez meu pai expressar uma compreensão sobre seus últimos 70 dias de vida e sobre a condição atual que nem mesmo eu, sua companheira ou os médicos, ainda que repetindo diariamente, talvez tinham conseguido até então.
Me recordo de uma passagem onde Chico Xavier falou sobre o quanto os hospitais são locais de encontro, humildade e ajuda. Não perguntamos a religião do médico ou enfermeira, nem a opção sexual da médica ou do técnico de enfermagem. Esperamos – às vezes de modo completamente passivo – que os profissionais da saúde salvem aquilo que temos como casa de passagem por este mundo: nosso corpo.
Comparado a alguns espaços de governança pública, os hospitais parecem ser bem mais democráticos do que a câmara de vereadores, por quê? Porque todos nós estamos tendo que passar pelos serviços de saúde esperando que salvem algo que nos é básico para seguir nesse mundo.
A pandemia, como muitos já falaram, precisa gerar em nós uma transformação estrutural sobre nossa compreensão enquanto indivíduo, nação e enquanto coletivo. Não concebo senão a inércia do comprometimento social e político quando vejo os que acenam a máscara na mão ao invés de usá-la no rosto. Não concebo senão a soberba dos que já passaram Covid e não usam a máscara porque “estão temporariamente imunes” como se eu, que nunca vi o cidadão ou cidadã, ao transitar pela mesma calçada, tivesse que dominar poderes transcendentais para saber o motivo pelo qual a máscara e os cuidados básicos se ausentam daquele corpo. Não temos parâmetros de empatia nos governantes do alto escalão para com o desastre que está acontecendo em nossas vidas minúsculas. Somos números, e números a serem descartados. É verdade que meu pai é só 1, é o maior e o melhor de todos.
Agora, senhor tecnocrata, quantifique essa qualificação nos seus dados desumanos que nem base de dados tem para reconhecer o perfil legal dos cidadãos a quem é de perene direito este território! Eu, que sou mulher, mestiça, preta, parda e não me deixo enquadrar em moldes conservadores, machistas, reacionários e discriminatórios preciso dizer: desconfiem de quem não consegue viver na simplicidade e ver na simplicidade a riqueza das coisas pois, quando sua casa estiver para ir aos ares, uma simples compressa de um pano de algodão velho umedecido de água fria posto sob seus pés imóveis e escaldantes de febre pode representar o maior dos paraísos.
Agora, temos tempo de sobra para ouvir Sérgio Reis e Golden Boys e eu fico só na expectativa de qual será a próxima dica musical para ficar observando o pezinho mexer e aquela cara de quem viaja no tempo ao ouvir as músicas de outrora.
Poesia
Pai, é preciso ter paciência. Foram 60 dias noutro tempo, noutro espaço, quase que em outro mundo, em outra dimensão, estou certa. Foram inúmeras intervenções, de drogas, bactérias, vírus, fungos, inundações de picadas, de sonhos desacordados, de uma respiração “quase nada”, foi quase nada onde você quase chegou. Pai, é preciso ter paciência, com o que se tem e com o que não se tem, porque, de si mesmo não se foge.
Pai, é preciso ter paciência. Olha pro lado, quantos se foram, quantos não tiveram a mesma sorte de ter tratamento, ferramentas, atenção, familiares presentes, amigos e amigas orando, rezando, fazendo promessas, novenas, trabalhos.
Pai, é preciso ter paciência: a recuperação é lenta, porém é certa. É certo que qualquer coisa é melhor do que o que foi, do que o agora, do que o hoje. Percebe que o ontem estava pior, hoje, um pouco melhor. É preciso paciência.
Pai, é preciso ter paciência: a gente quer te ver sorrindo, comendo pela boca, levantando a mão, contando os sonhos e mais histórias de quem ainda dorme acordado, de quem ainda não levantou do leito depois de 70 dias passados, de quem acorda e dorme, de quem, de repente, ficou tão dependente do outro ou de um calendário para saber ao certo que dia é e que horas são.
Pai, paciência, paizinho.
Te amo pai.
PaiCiência.
Pai, ciência de que é um dia depois do outro, do outro, depois, mais um dia. Um de chuva, outro de sol, tudo como a natureza vem dizendo há milhares de anos. Paciência, pai. Não há nada de novo, só você, que renasceu.
Por Natália Giacomello, mulher, educadora, formada em Filosofia, pós-graduada em
Projetos Sociais, capoeirista, ativista, mãe.
Fevereiro de 2021
Foto: Dephositphotos
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