Em Bento Gonçalves, o Juizado de Violência Doméstica funciona junto a 2ª Vara Criminal e há uma rede local de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica, formada pelo Centro Revivi, Promotoria de Justiça, Delegacia da Mulher e Patrulha Maria da Penha, da Brigada Militar. A promotora Lisiane Rubin relata sobre sua atuação nessa rede de proteção.
Como os casos de maus tratos chegam até você?
Promotora Lisiane – A porta de entrada da mulher no poder Judiciário, na maioria das vezes, é através da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM). Para a vítima de violência, seja física, sexual, moral, psicológica ou patrimonial, a Delegacia representa o acesso mais fácil à justiça. Na Delegacia, ela vai registrar as agressões sofridas. Vem de lá a solicitação da medida protetiva, com a pretensão da vítima: se ela quer o afastamento do agressor de casa, a proibição de aproximação, a assistência gratuita.
A vítima é quem postula as medidas preventivas?
Promotora Lisiane – Sim, solicita as medidas que entende adequadas para a sua situação, como por exemplo o afastamento do agressor. Às vezes ela se sente mais segura saindo de casa, indo para a residência de um familiar. Nesse caso, ela solicita e o juiz analisa esse pedido com base no que ela noticiou, deferindo ou não as medidas protetivas.
A violência contra a mulher pode ser ocasionada no seio familiar, o que acontece na maioria das vezes, ou fora dele, mas com quem ela tem ou teve uma relação íntima de afeto.
A minha Promotoria é substituta criminal, ela não trabalha só com a violência contra mulher, não é exclusiva da violência doméstica. Também atua na proteção do idoso, deficientes e nos crimes de detenção, os com penas mais brandas. Um leque bem eclético de atendimentos.
Qual é o auxílio da Lei Maria da Penha?
Promotora Lisiane – Imenso. Através da lei foram criados mecanismos visando inibir a violência doméstica, como as delegacias especializadas de atendimento à mulher e os centros de referência, como o Revivi, que faz os encaminhamentos das vítimas, presta atendimento psicológico e dá um suporte excelente para elas. De acordo com a Lei Maria da Penha, temos a possibilidade de prender preventivamente o agressor, seja na fase do inquérito policial ou na parte do processo judicial. Existe também a possibilidade de prender o agressor por descumprimento de medidas protetivas. Outra inovação trazida pela Lei é que ela impede que os crimes de violência contra a mulher se utilizem da Lei 9.099/95, de juizados especiais criminais, que abrange os crimes de menor potencial ofensivo, com possibilidade de adoção de benefícios despenalizadores, como a prestação de serviço à comunidade e a doação de cesta básicas. A Lei Maria da Penha proibiu a adoção desses benéficos, então o agressor não chega em juízo para fazer um negócio.
Como ocorre o trâmite do processo contra o agressor?
Promotora Lisiane – A lei estabelece uma audiência para oitiva da vítima, para ouvir se ela quer processar o agressor ou não. Na prática, essa audiência acaba sendo realizada com o agressor e com a vítima e, se possível, se busca conciliar as questões relativas à guarda de visitação, tem como regrar a pensão alimentícia nesse momento? Tem uma pessoa para intermediar essa visitação, já que as partes não conseguem se acertar? Tem algum familiar que possa fazer isso? Essa audiência também conta com a presença de um representante do Revivi, caso precise de encaminhamento.
Como estão ocorrendo as audiências por conta da pandemia do Coronavírus?
Promotora Lisiane – De forma virtual. O Revivi montou uma sala para as audiências.
O Ministério Público pode atender direto mulheres vítimas de violência doméstica?
Promotora Lisiane – Sim. Também pode solicitar as medidas protetivas em defesa dela. Porém, não nos vinculamos ao interesse da vítima se entendermos que não é o caso. Então, existem situações que precisam ser investigadas.
O que predomina nos Boletins de Ocorrência registrados em Bento Gonçalves pela Lei Maria da Penha?
Promotora Lisiane – A maioria das ocorrências é de ameaças e vias de fato. O que seria vias de fato? É qualquer agressão física que não deixa marcas, como empurrões, puxões de cabelo. Temos muitos casos de lesões corporais, mas o maior número que atendemos é de ameaças e vias de fato. São em menor número os registros de importunação sexual contra a mulher, até porque a denúncia é muito mais tímida nesses casos. Elas resistem muito mais em trazer à tona esse tipo de violência.
Qual a predominância do perfil das mulheres que registram o BO?
Promotora Lisiane – Em regra, mulheres de classes menos favorecidas, com baixa escolaridade. Essas são as maiores vítimas, porque vivem em condições às vezes impróprias, com facilidade de acesso ao álcool e às drogas, fatores que propiciam a violência. É o público mais vulnerável. A violência doméstica também acontece nas classes com mais poder aquisitivo, mas esses casos vêm menos à tona. Também há registros de ocorrências feitas por mulheres haitianas.
A agressão física é antecedida pela moral e psicológica?
Promotora Lisiane – Sim. A agressão física ocorre geralmente no momento da explosão, porque essa vítima já vinha sofrendo violência moral e psicológica há bastante tempo. Muitas vezes, ela não se dá conta da violência que vem sofrendo. A agressão não acontece da noite para o dia. A agressão é antecedida por agressão à autoestima, humilhação na relação e menosprezo. Toda essa pressão, coloca a vítima na condição de inferioridade proposta pelo agressor e pela sociedade onde culturalmente ela está inserida.
Pelo Revivi, em 2019, foram realizados 1.394 atendimentos de casos em andamento e 287 novos. Em 2020, foram 1.436 atendimentos, 298 novos. Isso não significa que a violência diminuiu durante a pandemia, só que não foi tão denunciada, por vários medos, entre eles o de contaminação e o de estar junto ao agressor, além da falta de recursos financeiros e da dificuldade de ter onde ir nessa situação. Esses motivos, seguramente, devem ter impedido muitas vítimas de efetuarem a denúncia.
Os agressores são reabilitados de alguma maneira?
Promotora Lisiane – Sim, havia, antes da pandemia, grupos reflexivos sobre violência só para homens. Um trabalho feito por psicólogas, assistente social, advogada, envolvendo a parte jurídica e a social. Eram de oito a doze encontros realizados no Fórum, encabeçados pelo Revivi. Muitos desses homens aumentaram sua compreensão acerca dos gatilhos da violência, diminuindo a reincidência. Outros foram encaminhados para atendimento nos CAPS.
O que fazer para mudar a sociedade patriarcal?
Promotora Lisiane – Nada se muda da noite para o dia, não existem mudanças que se consiga fazer num estalar de dedos. É uma questão de vivência cultural. A sociedade patriarcal atual vem de muito tempo. Vemos isso tanto em famílias de classe baixa, quanto em famílias de classe alta. O que precisamos fazer é educar a população, porque a violência de gênero é um retrocesso social. Quando se pensa no futuro, queremos igualdade entre homens e mulheres. Eles só se diferem biologicamente e organicamente. No mais, têm que ter igualdade e oportunidade, igualdade de salário e igualdade de tratamento. Ainda vivemos numa sociedade muito machista. Muitos estigmatizam a mulher. A vergonha, o medo, a dependência econômica e a falta de profissionalização da mulher propiciam que ela se mantenha nessa situação. As mulheres têm vergonha de dizer que são vítimas de agressões morais e físicas na própria casa. Em muitos lares, elas vão se submetendo por vergonha: do vizinho, do patrão. A cultura machista diz que “mulher gosta de apanhar”. Mulher não gosta de apanhar, mulher gosta de ser tratada como um ser humano, como qualquer um gosta de ser tratado.
Como o poder público e a comunidade podem auxiliar mais as mulheres vítimas de violência doméstica?
Promotora Lisiane – Temos que unir forças para ampliar a rede de proteção às vítimas de violência. É preciso ajudar essas mulheres a suportar as agressões sofridas, aumentando a autoestima. Além disso, elas precisam de uma profissão para se inserir no mercado de trabalho. Precisam de cursos profissionalizantes, com os prestados por entidades como o Senai e Senac. O próprio Sine poderia priorizar vítimas de violência doméstica na canalização de diversos trabalhos. São questões que precisamos melhorar nas políticas públicas. Também são válidas as campanhas educativas, com a divulgação dos direitos das vítimas. Todas devem saber que existem delegacias especializadas onde podem pedir medidas protetivas.
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