“Paco, o Bandoleiro da Serra Gaúcha” é texto do Capítulo “Memórias de Sangue”, do livro “Janelas da Memória”, de autoria do jornalista, escritor, pesquisador e historiador Ademir Antonio Bacca, resultado de uma criteriosa pesquisa sobre o que se publicou sobre a história de Francisco Sanchez Filho.
A história de Francisco Sanchez Filho foi um mosaico que começou a se formar em minha cabeça ainda na juventude, quando passei a me interessar pela história da cidade e por seus personagens, históricos ou folclóricos. Paco era um deles. Gostava de ouvir histórias a seu respeito e a indecisão entre se tratar de um bandido ou de um herói aguçava ainda mais minha curiosidade.
Temor, ódio ou respeito: qualquer dos três sentimentos se encaixa na história de Francisco Sanches Filho. As opiniões recolhidas sobre ele variavam de acordo com o lado político de quem as emitia: bandoleiro para uns, justiceiro para outros. A verdade, eu descobriria com o tempo, é que a história foi escrita com sangue, violência e traição. Sangue das vítimas do filho de imigrantes espanhóis que se radicaram nas margens do Rio Burati no final do século XIX e a traição dos políticos que o abandonaram à própria sorte quando seus serviços escusos não lhes interessavam mais.
Mas afinal, quem foi Paco? Qual de tantos que o imaginário popular legou para a história da nossa região é o que mais se aproxima da verdade? Herói ou bandido? Defensor dos pobres ou um mercenário a serviço do crime sob a complacência das autoridades?
Quem foi Paco?
Um dos grandes protagonistas da serra gaúcha no século passado, Paco não entrou na história pelas melhores páginas e embora até tenha sido chamado de “herói dos pobres”, não passou de um daqueles personagens que os historiadores chamam de “bandidos sociais”. Queiram ou não os seus defensores, Paco atuou como bandoleiro entre 1912 e 1930, fazendo o jogo sujo dos políticos aliados de Borges de Medeiros, presidente do Estado do Rio Grande do Sul. Assim, em poucas palavras, daria para acomodar a história de Francisco Sanchez Filho, o bandoleiro Paco, na estante de livros policiais de qualquer biblioteca; mas a história exige um mergulho mais profundo para se decifrar um pouco da atribulada vida do homem que espalhou terror nas barrancas do Rio das Antas e na região.
Nas reportagens, artigos, ensaios e livros que foram escritos sobre sua trajetória percebe-se a clara divisão de opiniões dos autores. Alguns o veem como o “Robin Hood da Serra”, numa equivocada comparação com o mítico fora-da-lei inglesa que roubava da nobreza para dar aos pobres, enquanto outros afirmam que Paco roubava para si, dividindo o butim apenas com seus comparsas de assalto.
Violento, bom de briga, rápido no gatilho e no manuseio de facas, fez desses atributos instrumentos para se fazer respeitado e temido, espalhando mais temor do que admiração por onde passasse. A ele foram atribuídas mais de 150 mortes, centenas de agressões, roubos e assaltos e outras tantas ações em favor de seus chefes políticos ou de quem o contratasse para uma empreitada. Apenas o número de mortes parece ser exagerado.
Galanteador, raptar e estuprar mulheres foram práticas que ele exercitou com frequência, chegando a ser tratado como um “Dom Juan Colonial” pelos jornais da Capital. Teve três esposas e incontáveis companheiras. Com a primeira, Maria Facchin, com quem se casou no dia 30/01/1911, teve dez filhos. Com Maria Frattini, que tinha apenas 15 anos quando foi seduzida pelo bandoleiro, teve outros três. A terceira, identificada apenas como Tereza, teria lhe dado outros três filhos, cujo paradeiro é até hoje desconhecido. Mas reza a lenda que ele teria outros espalhados pela região.
O início
Não era comum a presença de famílias espanholas em meio aos núcleos de imigração italiana no final do século XIX quando os imigrantes Francisco e Antônia se instalaram no interior da Colônia Dona Isabel, na Linha Brasil, Quinta Seção da margem esquerda do Rio das Antas. Traziam consigo as filhas Maria e Dolores, mas Antonia estava grávida quando chegou ao Brasil. Logo atraíram a curiosidade das famílias italianas, que perceberam que seus vizinhos eram diferentes não apenas nos costumes e no falar. Isso não os intrigava, gostavam deles. Na verdade, Francisco Sanches Collados e Antônia Pilar Buenazella Foan divergiam dos demais moradores ali estabelecidos por se vestirem bem e pelo nível de educação que demostravam ter, muito superior aos seus vizinhos, quase todos analfabetos. Francisco era alfabetizado e ocupou postos de Fabriqueiro e Inspetor de Quarteirão na comunidade. O casal sempre foi benquisto pelos vizinhos, embora tenham sido eclipsados da história nos anos seguintes graças à fama do filho Francisco.
Francisco Sanches Filho nasceu no dia 29 de maio de 1889 (mais tarde nasceria Ramon, o último filho do casal) e viveu na companhia dos pais até os 20 anos, quando mudou para Nova Pompeia, em companhia de uma das irmãs e o cunhado. Além do espanhol, falava fluentemente italiano e português.
Era um homem violento, bom de briga, rápido e preciso no gatilho e também no manuseio de facas. Apesar da baixa estatura, era um homem forte, difícil de ser vencido numa briga a socos. Isso fez dele um homem temido por todos, fato que alguns preferiam enxergar como respeito, mas que na realidade era medo. Por outro lado, exercia certo fascínio com as mulheres, o que lhe proporcionou uma vida sentimental muito agitada. Exímio jogador, costumava ganhar dinheiro dos colonos explorando suas habilidades no jogo da “tampinha” ou no carteado.
Trabalhou como balseiro e por mais de duas décadas atuou como “fósforo” (como na época eram conhecidos os atuais cabos eleitorais) do grupo que apoiava o Presidente da Província Borges de Medeiros, fazendo o serviço sujo, dando segurança e angariando votos nas eleições para os candidatos chimangos. A proteção das autoridades acabou lhe abrindo as portas para a vida de agressões, assaltos e assassinatos que passou a praticar. Mais tarde, sem o apoio das autoridades, caçado pela própria polícia que o protegera, tornou-se o bandoleiro implacável que espalhou um rastro de terror e mortes pela região.
A sorte de Paco seria selada no dia 14 de dezembro de 1923, oito anos antes da sua morte, quando Borges de Medeiros e Joaquim Francisco de Assis Brasil, líder dos Maragatos, assinaram o “Pacto de Pedras Altas”, encerrando a Revolução de 1923. Após o fim da guerra, com chimangos e maragatos unidos, cada lado foi abandonando seus incômodos “fósforos” à própria sorte, obrigando-os a fugirem da perseguição das autoridades que antes os protegiam.
O “Fósforo”
Cabos eleitorais nos dias atuais ainda têm grande influência em período de eleições. Aqueles que têm boas relações e controlam bairros ou comunidades têm mercado de trabalho e são muito bem pagos durante o período eleitoral. É uma prática antiga e, salvo em algumas regiões do país, os “fósforos” de hoje mudaram a maneira de persuadir os eleitores a votarem nos candidatos para quem trabalham.
Paco foi um dos cabos eleitorais mais disputados da região durante o primeiro quarto do século XX e sua escolha nunca recaiu sobre a influência que ele tinha sobre o eleitorado e sim, pelo medo que ele impunha a eles na hora de se apresentarem para votar. Eleitores que ele mesmo ia buscar em casa e conduzia à urna de votação sob ameaças de morte se preciso fosse. Sua área de atuação abrangia Bento Gonçalves, onde contava com a proteção dos intendentes Antônio Joaquim Marques de Carvalho, Olinto de Fagundes de Oliveira Freitas e João Batista Pianca; e Alfredo Chaves, onde era protegido do intendente Achiles Taurino de Resende e do Interventor Cesar Pestana, além de importantes comerciantes.
Numa época em que o voto não era secreto, Paco garantia, com o uso da violência, os votos necessários para que o Partido Republicano Rio-grandense, de Borges de Medeiros, elegesse seus candidatos com tranquilidade.
Jornais da capital da época registram que na eleição de 1929, Paco e outros “fósforos” foram deslocados de Alfredo Chaves para Garibaldi a fim de evitar que Armando Peterlongo, candidato do Partido Libertador, vencesse as eleições. Considerado invencível, Peterlongo foi derrotado por Manoel Coelho Parreira graças ao terror que Paco e seu grupo espalharam entre os eleitores da cidade.
Mas com a assinatura do Tratado de Pedras Altas, as autoridades retiraram a proteção que davam aos seus cabos eleitorais, abandonando-os à própria sorte, o que levou a maioria a enveredar de vez para o caminho do crime. Paco faria sua última campanha política cooptando votos para Getúlio Vargas que concorria à presidência em 1930.
Mas o primeiro de março daquele ano seria não só o seu último dia de “fósforo”, mas o dia em que o bandoleiro veria sua vida se transformar no inferno de fugas e perseguições que o levariam à morte poucos meses depois. O fim começaria por Nova Pompeia.
A sociedade com o delegado
Octacílio Vaz era delegado de polícia de Alfredo Chaves e também Subintendente, mas isso não impediu que ele e Paco organizassem uma poderosa quadrilha de assaltantes, que praticou inúmeros roubos na região. Protegido pela polícia, Paco roubou a casa comercial de Sylvio Giordani, na Estrada Buarque de Macedo. Depois fez aquele que foi o maior assalto da sua carreira de crimes, roubando a vultosa importância de 30 contos de réis em mercadorias da Loja Feres Miguel e Irmão, em Bento Gonçalves.
Entretanto, na divisão do roubo, o delegado Octacilio resolveu guardar para si a melhor parte da mercadoria, não entregando a Paco o que lhe cabia, o que fez com que a sociedade entre eles chegasse ao fim: Octacílio continuava autoridade, mas Paco era só um bandido que ele tinha que prender ou, de preferência, matar.
Paco sabia disso e passou a se esconder na região, pouco aparecendo na sua casa na Quinta Magra. Preferia as cavernas da região, que ele conhecia tão bem, e porque sabia que eram poucos aqueles que tinham coragem para enfrentá-lo no meio do mato.
Pressionado pelas autoridades da capital que exigiam a prisão de Paco, Octacílio foi informado de que ele estaria em Monte Bérico e, na noite de 29 de agosto de 1929, foi ao seu encontro, em companhia de Waldemar de Oliveira Chaves, Comandante da Guarda Municipal e um soldado. Paco ainda mantinha uma rede de informantes e ao saber das intenções do ex-companheiro de crimes, resolveu fugir para Sananduva num carro de aluguel, levando consigo uma moça de 20 anos que acabara de raptar.
Não sabia que o motorista do carro estava acordado com Octacílio e que este os esperaria no meio do caminho. Na troca de tiros, a acompanhante de Paco foi ferida numa das clavículas enquanto o delegado e o comandante da Guarda Municipal foram mortos por Paco, que também foi atingido por dois disparos, um de raspão e outro no peito. O terceiro policial, mesmo ferido, conseguiu se salvar.
As mortes do delegado e do comandante da Guarda Municipal revoltaram a comunidade de Alfredo Chaves e enfureceram ainda mais as autoridades da capital do estado. Aumentou-se o valor da recompensa pela cabeça do bandoleiro e também aumentaram as forças policiais que foram deslocadas para Alfredo Chaves para a caçada final, onde o prefeito Saul Farina determinava que o pegassem. Vivo ou morto.
A sorte de Paco estava por um fio, era vela que se apagava.
O duelo de Nova Pompeia
Percebia-se facilmente um clima pesado no ar naquela manhã de 1º de março de 1930 em Nova Pompeia, fosse no olhar assustado ou no caminhar apressado das pessoas que compareciam à seção de votação para escolher, entre Getúlio Vargas e Júlio Prestes, quem seria o próximo Presidente da República. O que preocupava os moradores não era a presença dos já conhecidos “fósforos” e sim a chegada do mais temido deles, o Paco, que fazia uma refeição no Restaurante da família Luzzatto. Estava acompanhado de dois capangas e, como era de costume, fortemente armado.
Na praça estava João Nunes, motorista da família Périco, esperando-o para desafiá-lo para um duelo. Nunes e Paco haviam se estranhado alguns dias antes em uma festa na Linha Brasil. O motorista jurara se vingar e esperava que ele saísse do restaurante. Estava armado de mosquetão, revólver e faca e parecia ter noção da encrenca em que estava se metendo.
No interior do restaurante, o proprietário aconselhara Paco a deixar suas armas e voltar para pegá-las depois de votar, no que foi atendido.
João Nunes, além das razões pessoais, tinha outra motivação para querer matar Paco: a recompensa que os Périco haviam oferecido pela cabeça do bandoleiro depois que ele fizera uma série de assaltos às tropas que levavam mercadorias para sua casa de comércio.
Os amigos de Paco ficaram esperando por ele no restaurante. Dirigiu-se ao local de votação, cumprimentou as pessoas, votou e retornou ao restaurante. Lá tomou duas cervejas com os amigos, recolheu suas armas e, ao sair para a rua, foi desafiado por Nunes. Disparou para o alto esperando com isso assustar o desafiante, mas este revidou e Nova Pompeia logo virou uma praça de guerra. Aqueles que estavam na rua, a polícia inclusive, debandaram em disparada em busca de um lugar seguro para se protegerem enquanto as balas disparadas pelos dois lados perfuravam tudo o que encontravam pela frente. Ninguém sabe quanto tempo durou o tiroteio até que ambos ficaram sem munição e partiram para o confronto corpo-a-corpo, na qual, para surpresa de todos, Nunes levava a melhor. Paco estava em suas mãos, praticamente dominado, quando um dos seus amigos gritou-lhe para que usasse a faca que trazia escondida em uma das botas:
– A faca, compadre! A faquinha!
Num último esforço conseguiu derrubar Nunes e, antes que ele conseguisse levantar, acertou-o em cheio no peito. Nunes morreria algumas horas depois no hospital de Bento Gonçalves.
Desta vez o caso não foi abafado pelas autoridades.
A sorte de Paco começava a mudar. Getúlio Vargas perdera a eleição para Júlio Prestes e não demoraria para que o país mergulhasse na Revolução de 1930.
A perseguição
Desde 1920, já casado, Paco vivia com a família no interior de Alfredo Chaves, no núcleo colonial chamado Nossa Senhora da Pompeia, Linha Parreira Horta, 5ª seção da margem direita do Rio das Antas, conhecida como Quinta Magra, pela pobreza da região.
Depois de matar o Delegado de Polícia e o Comandante da Guarda Municipal, Paco tinha consciência de que seria alvo de uma caçada implacável e decidiu refugiar-se numa caverna, onde curou os ferimentos que sofrera no tiroteio em Monte Bérico.
Saul Farina assumia como intendente de Alfredo Chaves e sua prioridade era pegar Paco. Vivo ou morto. Mas não era fácil encontrá-lo, Paco conhecia as barrancas do Rio das Antas como a palma das mãos. Ali nunca o pegariam. E ele ainda tinha aliados. Poucos o admiravam, muitos o temiam, mas formavam uma rede de proteção que permitia que escapasse das tropas que o caçavam.
Nas ocasiões em que era obrigado a ir à cidade, contava com a ajuda de amigos confiáveis que lhe davam pouso, dormindo uma noite em cada lugar, mas retornava sempre para uma das grutas quando percebia que estava correndo perigo. Os dias se arrastavam lentamente naqueles últimos dias do ano de 1930.
O fim
Foi entre as paredes da Intendência de Alfredo Chaves que a sorte de Paco foi selada. Uma reunião de pais de alunos da Escola Marina Largura, onde os filhos de Paco estudavam, seria a isca para atraí-lo para uma armadilha fatal. O motivo da reunião era decidir se a professora da escola, que era protegida do bandoleiro, seria substituída ou não devido a reclamações que haviam chegado ao Intendente Saul Farina. Um amigo de Paco, até hoje mantido em anonimato, seria o algoz que o entregaria aos seus assassinos.
Era um domingo de sol forte, dia 19 de fevereiro de 1931, e os pais dos alunos deixavam a escola depois de votarem pela permanência da professora, temerosos de uma reação por parte do seu protetor.
Paco andava a pé, seguido pelo tal amigo a cavalo. Seus filhos iam à frente. Caminhou poucos metros e, de repente, um tiro foi disparado para o alto. Era o sinal combinado para o traidor fugir. Do meio da mata, quatro homens armados esperavam o momento de entrar em ação. Paco tentou fugir mas não teve tempo, foi crivado de balas na frente dos filhos. Mesmo após constatar que o bandoleiro estava morto, seus assassinos descarregaram toda sua munição sobre o cadáver, montaram em seus cavalos e foram embora.
Chegara a hora da verdade e caíra por terra o mantra que Paco passara a vida recitando: “ainda não fizeram a cadeia que irá me trancar, nem a bala que vai me furar”.
A vela se apagara.
Nasce a lenda
Colono, balseiro, tropeiro, capanga de políticos, caudilho, bandoleiro, arruaceiro, valentão, galanteador, afável, fisionomia alegre, sorriso aberto, assassino frio, amigo dos poucos amigos, inimigo de todo aquele que o enfrentasse. Assim era Francisco Sanches Filho, que seguindo o costume espanhol, ainda pequeno recebeu o apelido de Paco e que um dia, aos 20 anos, deixou a casa dos pais na Linha Brasil, atravessou o Rio das Antas e instalou-se em Nova Pompeia para ajudar a irmã e o cunhado num pequeno bar onde aprendeu as manhas do carteado e a trapacear no jogo das tampinhas.
A imprensa da capital, que abria seguidas manchetes contando as façanhas do “fósforo” do PRR, comparava-o ao cangaceiro Lampião, o que em muito contribuiu para que se criasse um misto de admiração mesclado com terror, com todos os ingredientes para transformar um facínora em lenda. Entretanto, quase sempre se esqueciam de dizer que, na maioria das vezes, Paco era apenas o braço que executava a ordem que vinha de cima.
Assim, a morte de Paco foi recebida com alívio pelos políticos que lhe deram cobertura e por muito tempo se valeram dos seus serviços intimatórios que lhes conseguiram votos para que se mantivessem no poder durante tantos anos. Vivo, Paco era uma ameaça de entregar todo mundo, caso fosse preso. Uma carta escrita às autoridades propondo se entregar em troca se ser mantido vivo, nunca chegou às mãos do destinatário.
Paco foi velado na sala de sua casa na Capela Nossa Senhora da Pompeia em cima de duas tábuas e foi enterrado no cemitério local. Algum tempo depois, seus restos mortais foram transladados para Bento Gonçalves, onde repousam anonimamente em uma sepultura de algum dos cemitérios da cidade, evitando assim a curiosidade da população.
Embora tenha sido esquecida pelos historiadores gaúchos, a trajetória de Paco tornou-se uma lenda, que sobrevive e intriga na região.
O silêncio da família
Quando Paco caiu em desgraça e foi abandonado pelos políticos que lhe davam cobertura e em seguida jurado de morte pelas autoridades, a culpa pelos seus crimes foi descarregada sobre sua família. Cada vez que o procuravam e não o encontravam na Quinta Magra, os policiais torturavam física e psicologicamente sua esposa e seus filhos na tentativa de que eles lhes informassem o seu paradeiro.
Essas agressões e humilhações acabaram se transformando numa rede de proteção ou numa concha onde os herdeiros se fecharam num silêncio que atravessou décadas e que a maioria deles acabou levando para a sepultura.
Se fosse necessário não alimentar a opinião pública a fim de se protegerem da história que fora escrita por seu pai, e não por eles, os Sanches defenderam seu direito com unhas, dentes e até advogados quando foi necessário, poucas vezes permitindo que a imprensa e historiadores invadissem sua privacidade.
No que fizeram muito bem. Mas isso não impediu que a história de Paco se espalhasse pela região e pelo estado, contada de forma diferente a cada voz e exercesse o sagrado direito de toda lenda que se preze: bandido, herói ou uma vítima do sistema político vigente na ocasião?
Morto Paco, ficou a lenda. E as lendas, sabemos, têm asas. Acham frestas nas gaiolas da memória e mesmo que alguns não queiram, abrem as asas e se soltam ao vento porque, ao contrário dos mortais, sabem voar.
A foto lendária
A foto de Paco com um revólver na mão direita, um mosquetão ao ombro, outros revólveres e sua inseparável faca presos à cintura é aquilo que hoje se chama de foto de estúdio e foi batida por Aurélio Cavalli, no vilarejo de Fagundes Varela, então distrito de Alfredo Chaves. Na ocasião o bandoleiro estava escondido em alguma gruta da região depois de duelar e matar João Nunes em Nova Pompeia, distrito de Bento Gonçalves, hoje Pinto Bandeira.
Cavalli, que era fotógrafo nas horas de folga, não fez perguntas, limitou-se a fotografar. Abriu a máquina de fole, colocou a chapa de vidro e encaixou o filme. Alinhou Paco na posição ideal e acomodou-se sob o pano escuro. Ao forçar o dedo no disparador estava preocupado apenas com o foco. Em nenhum instante passou por sua cabeça que naquele instante ele estava fazendo uma das fotos mais emblemáticas do século passado, a qual eternizaria a lenda de Francisco Sanches Filho, o Paco.
O filme que não saiu
Em 1979, a história de Paco estava praticamente esquecida em toda a região. Os poucos historiadores que haviam se aventurado a pesquisar a vida do bandoleiro haviam esbarrado no silêncio da família e haviam desistido. Foi quando a imprensa da capital abriu manchetes anunciando que a Interfilmes, do produtor Itacir Rossi, faria um filme contando a história de Paco e que o jogador de futebol Elias Ricardo Figueroa, faria o papel principal.
O roteiro estava pronto e era assinado pelo cineasta Antonio Jesus Pfeil, baseado no seu livro “O trágico fim do bandido Paco”, que também daria nome ao filme.
Rossi esperava repetir nas telas o sucesso de “Motorista sem limites”, filme do cantor Teixeirinha que ele produzira no ano anterior e se tornara o grande campeão de bilheteria nos cinemas do estado.
Alertada, a família Sanches foi aos tribunais e conseguiu impedir que a filmagem fosse realizada e o projeto acabou se resumindo na publicação do livro-roteiro de Pfeil alguns anos depois.
Imprensa e pesquisadores resgataram a história
Carlos Wagner, um dos mais premiados repórteres da história da imprensa gaúcha de todos os tempos, foi quem pela primeira vez mergulhou no emaranhado da teia de verdades, boatos & ficção que o imaginário popular teceu em torno da história de Francisco Sanches Filho, o Paco. A reportagem “Paco, o bandoleiro da Serra Gaúcha”, publicada no Jornal Zero Hora em junho de 1988 tornou-se fonte de pesquisa obrigatória a todo interessado em conhecer a vida e a história do homem que se tornou uma das maiores lendas do interior do estado nos primórdios do século XX.
Treze anos depois, Gustavo Guerlter, repórter do Jornal Pioneiro, trazia para o século XXI a história de Paco em uma bem elaborada reportagem publicada também em capítulos nas páginas do jornal caxiense que resultou no livro de grande aceitação “Paco – Uma história escrita com chumbo”.
Por sua vez, o professor universitário Sergio Cruz Lima defendeu em artigo que Paco Sanchez era uma espécie de líder campônio, o “Robin Hood gaúcho”, em um período histórico do Rio Grande “em que as reivindicações sociais ainda não tinham coloração política, muito menos uma agremiação partidária definida capaz de arrostar nos interesses dos humildes”, deixando de lado o fato de que Paco, a serviço das autoridades, conduzia os cidadãos às urnas de votação sob a ameaça de uma arma.
Já a historiadora Márcia Londero defende que Paco se enquadra perfeitamente no que Eric Hobsbawn define como fenômeno de reação às situações de exploração, opressão e miséria vividas por uma comunidade camponesa nas mãos de um bandido social. Essa opinião é criticada por alguns revisionistas, principalmente porque se baseia na análise dos bandidos e utiliza fontes populares, pouco fazendo uso de documentos oficiais como fontes históricas. Ao escrever o ensaio “Paco: um bandido social da Serra gaúcha” Márcia foi quem mais se aprofundou na pesquisa de crimes cometidos por Paco e processos que ele respondeu.
Na apresentação do livro de Gustavo Ghertler a historiadora Loraine Slomp Giron reclama que Paco não tem merecido a devida atenção dos historiadores, alertando que são raros os estudos sobre ele e sobre sua ação política em prol do Partido Republicano Rio-grandense. Para ela, “Paco faz parte da revelação do negativismo social, do uso da contravenção na conquista do poder. Não é o primeiro nem o único, mas é exemplo claro de que, naqueles velhos tempos de corrupção política e policial, da associação indébita do banditismo com políticos renomados da República velha”.
Fontes:
Guertler, Gustavo – Paco – Uma história escrita com chumbo; Maneco – Livraria & Editora, Caxias do Sul, RS, 2001
Pfeil, Antonio Jesus – O trágico fim do bandido Paco; Bortolini Edições, Canoas, RS, 1990
Farina, Geraldo – A História de Veranópolis
Wagner, Carlos – Paco, o bandoleiro da Serra Gaúcha; Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 1988
Guertler, Gustavo – Uma história escrita com chumbo; Jornal Pioneiro, Caxias do Sul, 2001
Lodero, Márcia – Paco: um bandido social da Serra Gaúcha
Fotos: Reprodução Ademir Antônio Bacca
Foto Paco: Aurélio Cavalli
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